sábado, 3 de julho de 2010

"Sagarana", de João Guimarães Rosa

"Sagarana" - João Guimarães Rosa
Livraria José Olympio Editora. Rio de Janeiro, 1976

Guimarães Rosa foi um dos meus maiores desafio de leitura. Embora já tivesse lido outros contos do autor, foram os contos de "
Sagarana" que me levou a vislumbrar as deliciosas veredas deste belíssimo escritor mineiro. O livro é composto dos seguintes contos:
O Burrinho Pedrês”, “A volta do marido pródigo, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha Gente”, “São Marcos”, “Corpo Fechado”, “Conversa de Bois” e “A hora e vez de Augusto Matraga”. Na 18ª edição, que encontrei num desses férteis sebos de São Paulo, enfeita a obra o delicioso ensaio de Oscar Lopes, que escreve:

"A construção do romance em
flash-back serve,
como a toda a me lhor épica desde a Odisseia, para melhor ordenação rítmica do recanto, num jogo de compensações; serve ainda para enlace dos temas secundá rios (como as recorrências da "canção de Seruiz", com o tema da saudade da terra natal; ou como o desdobramento da experiência erótica até à fixação final, através, nomeadamente, dos complexos que a figura de Diadorim representa); mas serve sobretudo para pôr forma aguda e concreta a dialética do bem-e-mal, ou seja, do pacto. Riobaldo adere a sucessivos chefes de jagunços, e acaba mesmo por ser um desses chefes, porque descobre que os cangaceiros têm a sua ética. Á ética, afinal, que a organização gentílica e, depois, feudal idealizou com Aquiles, Ulisses, Rolando ou o Cid. Ética dotada de instituições, de uma ideologia e até de uma retórica — pois assistimos a coisas como um julgamento em forma entre cangaceiros; a luta entre bandos emaranha-se com lutas políticas estaduais ou federais, o que a alguns dá o sentimento de levantamento revolucionário ou de exército regular oficializado; e há discursos patrióticos, legalistas, com todos os ingredien tes demagógicos da retórica política brasileira at its worst. O status final do narrador, feito proprietário pacato, sugere que a luta entre bandos se resolvera, pelo menos em grande parte, com o extermínio dos Hermógenes. Mas foi o pacto que o permitiu, quer dizer: a dialética do bem e do mal, como fins ou como meios. Recordemos a propósito a Orestia de Esquilo, em que a moral gentílica da vingança, ou vendetta, entre clãs, ou dentro dos clãs, se resolve absorvendo o último vingador, Ores-tes, e instituindo o tribunal da Cidade, passando as Fúrias (deusas da 'Vingança antiga, retaliação meramente familiar) ao serviço de uma nova forma de vingança, ou repressão, superior, institucionalizada pelo Es tado. Simplesmente, Guimarães Rosa, edificado por mais dois milênios e meio de experiência histórica e pela evidência imediata do seu mundo, reabre o problema que Esquilo julgara estar resolvido. Nenhumas ilu­sões maniqueístas sobre o dualismo absoluto do bem e do mal. O ho mem continua pactário. Ninguém chegou ainda à destrinça inequívoca, e, como insinua a bela "estaria" "O Espelho", todos deveriam estreme cer à simples pergunta de "Você chegou a existir?" Hermógenes não estava definitivo. Mas ainda ele não fora morto, e já nos Gerais havia um homem como Habão que não sabe olhar para outro homem sem o ver na qualidade de força trabalhadora anónima, reprodutora de investimento, tal como a Medusa, que convertia, a um simples olhar, qualquer mortal em rochedo. O Taturana fêz-se, ele próprio, Habão, sem dar por isso. Todos continuamos Faustos, ou Orestes, e mais inaca bados são ainda os que o não sabem."

E, como texto-ilustrativo, selecionei este trecho do conto "Conversa de boi", que segue como estímulo aos que também desejam superar a dificuldade inicial de se penetrar na maravilhosa linguagem do genial autor de "
Grandes Sertões: Veredas":

"que
já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e
indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por num, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!
— Falam,- sim senhor, falam!... — afirma o Manuel Tim borna, das Porteirinhas, — filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas bar rigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer;— Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.
— Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje:... "Viso sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!,.." Mas, e os bois? Os bois também?...
— Ora, ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.
— Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
— Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja" (p. 287).

É isso!

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