sábado, 19 de novembro de 2011

Graciliano Ramos: a angústia de "Angústia"

Brevíssimos e simplórios apontamentos sobre a obra "Angústia", de Graciliano Ramos
Por: Iba Mendes (novembro de 2011)

A aflição de Luis da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado lingüístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu título. A frustração, a insatisfação e o sentimento de inutilidade do funcionário público Luís, sua impossibilidade de lutar contra uma rotina que consome seu tempo e sua existência, são assim destrinchados nas palavras que este emprega para entender o mundo e aqueles que o cercam. “A minha linguagem”, diz ele: “é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes”. É com essa linguagem que ele constrói sua realidade solitária, e é com ela que sua angústia e frustração existencial sobressaem do início ao fim do livro. Palavras como carne, sangue, entranhas, ventre, tripas e outras correlatas, tornam sua angústia à própria angústia de quem o ler:

Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava”.

O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrobucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em silêncio.”

Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos parallepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho.

Necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capueira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus”.

Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. O homem para um lado, ela para outro, arrastando a filha pequena, a barriga deformada, estazando-se, agüentando pancadas nos olhos. Talvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-ia dentro de algumas horas na cama dura, a carne cansada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas remendadaz.

Parecia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos, como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pêlos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria. Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.”

Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinha Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis.”

Com um pouco de esforço podia admitir-se que fosse redondo, mais ou menos redondo, comparável a uma cabeça chata feita de curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em circunvoluções cerebrais, levantei-me e fui beber um gole de aguardente.

Na escuridão do cárcere, depois que a chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da cadeia recebia os duzentos réis do torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, agüentaria facão, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.”

A linguagem, portanto, é o que caracteriza não apenas a angústia da personagem, como à do próprio autor, que vivenciou na “própria carne” o tormento do cárcere. Quando escreveu esta obra, Graciliano tinha sido preso a mando do governo ditatorial de Getúlio Vargas, daí, por exemplo, às constantes menções à “água de bacalhau”, subterfúgio utilizado pela polícia getulista para torturar seus adversários políticos: “Não me matem de fome nem me dêem água de bacalhau. Eu me explico.” / “Não seria preciso me darem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Água de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio...”/ “A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Precisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Confessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes, as cartas, os artigos.” / “As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.”

O assassinato de seu rival Julião Tavares, que seu deu com uma corda que ganhara de presente do pedinte Ivo, torna-se assim o ápice da sua desesperação, o terrível instante em que Luis da Silva se sentiu verdadeiramente "superior”.

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É isso!

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"Terra do Pecado", de José Saramago

"Terra do Pecado", de José saramago: breve análise
Por: Iba Mendes (novembro de 2011)

Não li todas as obras de Saramago, e aquelas que tive a satisfação de ler talvez não sejam suficientes para decifrar seus enigmas, contudo, foi quase o bastante para concluir que não é possível entendê-lo sem se levar em conta a “problemática” religiosa.

Como se sabe, Saramago morreu intoxicado pelo “hormônio comunista”, como ele mesmo se definia em vida. "Por que precisamos de Deus?”, indagou ele quando sabatinado no Teatro Folha, em 2008, ao ser perguntado se a doença havia mudado sua percepção de Deus. Já em relação à Bíblia, declarou ele na mesma ocasião que se tratava de um “desastre”, cheia de "maus conselhos, como incestos, matanças". Aparentemente uma jibóica contradição, levando em conta que, se não todos os seus livros, ao menos uma boa parcela deles está muito bem guarnecidos por temas bíblicos e passagens diretamente relacionadas à cristandade. Seu último livro, por exemplo, tem por título exatamente o nome de uma conhecida personagem bíblica: “Caim”. Há outros títulos que remetem da mesma forma ao universo bíblico e cristão, tais como: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, “Memorial do Convento”, “A Segunda Vida de Francisco de Assis” etc.

“Terra de Pecado” é mais outro título, que de igual maneira traz ao horizonte literário de Saramgo a velha problemática religiosa, os valores judaico-cristãos, que tão profundamente impregnaram a cultura e a moral do Ocidente. O sentimento de culpa que atormenta e persegue a personagem Maria Leonor, após a morte de seu marido, sintetiza em si o título do livro, muito embora este, segundo o próprio autor, fora dado pelo editor que não via em “A Viúva” um atrativo comercial.

Saramago, como um bom crítico da moral cristã, soube conciliar no livro ao mesmo tempo a “crença” e a “dúvida”, esta última muito bem tipificada na personagem Pedro Viegas, um “bom herege”, segundo o padre Cristiano. Benedita, a criada, faz o papel da “divindade possessiva” ou do "sacerdote vigilante", que não admite transgressões, que fica sempre de sentinela, que condena e que exige fidelidade absoluta. Leonor, fragilizada física, emocional e espiritualmente sofre a tortura de ter que lidar ao mesmo tempo com a severidade moral imposta pela tradição e a vontade de se libertar para à vida. O médico e amigo Viegas, que muito lhe ajudou na reconstituição de sua saúde, busca também, na sua visão de cético, curar sua alma atormentada: “Eu podia ter, também, sucumbido a um golpe semelhante ao que tu sofreste, podia passar a minha existência inundado de pensamentos inúteis, lembrando a minha mulher falecida. Não o fiz, porém. Resolvi viver. Resolvi deixar a minha morta em paz, pensar nela com uma saudade vaga e, apenas um pouco triste, dedicar um breve espaço da minha vida à amargura de a haver perdido. Ao princípio, custou-me. A felicidade é tão absorvente, habituamo-nos tanto a ela que quando nos foge, quando no-la roubam, sentimo-nos incompletos como se uma parte essencial do nosso corpo tivesse desaparecido, deixando uma chaga imensa e dolorosa, que não fecha e destila sempre o pus da nossa desventura. Mas como tudo isto é vão, Maria Leonor! Como nós complicamos a extraordinária simplicidade da vida! Como nós atribuímos ao simples correr dum elo da cadeia uma importância tão grande, minha filha! No fundo, é apenas isto: o cessar de uma existência, o apagar duma lâmpada. Os laços do sangue, o hábito, é que complicam esta sucessão, este passar do facho...” Mas ele era um herege, ou, como disse Benedita: “um homem condenado às penas do inferno”, como isso era possível? Ao que a própria Leonor responde, quando questionada pela criada: “Os homens são simples instrumentos de que a vontade divina se serve para cumprir os destinos que demarcou na eternidade. Que importava a Deus que o escolhido para me curar fosse um ateu ou um crente? Deus entendeu que eu devia ser salva e salvou-me. Não podemos perscrutar as razões que levaram a Providência Divina a segurar-me quando eu me despenhava nos abismos da inconsciência e da morte. Foi o doutor Viegas quem me salvou, dirão os cépticos; foi Deus que, por intermédio dele, não quis que eu morresse já, dirão os crentes; ainda não era a minha hora, dirão os fatalistas. Todos temos razão, afinal. Eu fui salva quando me perdia. Quem me salvou? Foi Deus, foi um homem, foi uma ideia? Tudo isto e nada disto. As ideias que fazemos de Deus, do homem e da ideia são, apenas, imperfeitas compreensões do que deverá ser a Verdade, se é que, por fim, a Verdade não é totalmente diferente. - Parou um momento e continuou, com um leve sorriso: - Apesar de todas estas dúvidas, todos nós, no fundo do nosso ser, cremos em alguma coisa. O próprio doutor Viegas, com tudo o que diz e faz, crê. Cremos justamente porque não sabemos e é esta constante ignorância que mantém a fé, qualquer que ela seja. A Verdade pode ser tão horrível que, se fosse conhecida, talvez destruísse todas as crenças e fizesse do Mundo um grande manicômio. O que nos vale, o que nos mantém nesta indiferença de boi ungido, é a impossibilidade do conhecimento absoluto, e então contentamo-nos com simples aparências, de que tecemos a vida inteira.

Viegas, aparentemente o “alter ego” do próprio autor Sramago, está a todo momento instigando à dúvida, ao questionamento quanto aos valores impostos pela religião à sociedade, seja na simples recusa em dar graças a Deus pela comida, seja na ironia como tratava o padre Cristiano, de quem dizia que o único defeito “era saber teologia e latim”. Viegas, embora moderado em seu ateísmo, não perdia uma oportunidade para instigar a vacilante Leonor ao ceticismo: “- Não sei que diacho de escrúpulos são estes, mas peço-te que te lembres que o Dionísio crescerá, que os livros e a vida hão-de dar-lhe perspectivas diferentes das atuais e que as suas crenças infantis sofrerão rudes abalos. E ele não resistirá, por certo...” / “- Ai, não estou a brincar, menina, não estou! Só quero saber o que posso fazer por ti. Bem vês, se te refugias na religião, então, eu, do fundo da minha insignificância, afasto-me e deixo o campo livre à consolação suprema...

Benedita, não obstante na sua simples função de criada, exerce um poder decisivo sobre a pobre Leonor; se não o próprio poder da “divindade”, ao menos de um de seus “representantes” na terra: - Parece que a Benedita se transformou na guardiã da moralidade da casa.” / “- Tudo o que ela faça ou diga tem sempre para mim um segundo sentido uma intenção reservada. E justamente o que me tortura é o não saber ainda, depois de todo este tempo, quais são as suas verdadeiras intenções.” A cena, a seguir, é o ápice da força moral pela qual a empregada mantinha atormentada a viúva no peso da tradição, é quando descobre que esta, pela segunda vez após a morte do marido, mantém relação sexual com outro homem, o primeiro seu cunhado, e dessa vez com seu médico e amigo, Pedro Viegas:

“Benedita remoía um desespero nervoso e irritado. Por fim, deixou-os na ruidosa alegria com que empurravam, todos à uma, a nora, que estralejava içando caudais do poço.
Deitou a correr, curvando a cabeça ao passar debaixo dos ramos caídos da nogueira que assombreava o largo onde se afundara o poço. O lenço preto que levava nos ombros prendeu-se-lhe num espinheiro, e ela nem sequer olhou. O hortelão, ao vê-la naquela corrida, perguntou, entre duas enxadadas:
- Que levas tu, mulher?
A criada não respondeu. Continuou na correria desatinada, já ofegante, com o coração a pulsar-lhe desabaladamente no peito. Quando empurrou a cancela, feriu uma das mãos na farpa de um arame, mas nem sentiu a dor nem o calor do sangue. Parecia que era levada por uma força sobre-humana que a cegava e tornava insensível a tudo que não fosse o caminho que conduzia a casa.
Ao virar a esquina, parou um instante, arfando. Olhou pela alameda fora até à estrada deserta. Rente ao prédio, deu uma carreira, a ocultar-se debaixo do alpendre. E dali aproximou-se mais devagar, até chegar à porta. Entrou silenciosamente. Foi à sala de jantar, mas regressou logo, vendo-a deserta e escura. Correu todas as casas do rés-do-chão numa busca ansiosa, foi até à cozinha, onde surpreendeu Joana, que dormitava sobre a mesa enquanto as panelas chiavam. Atirou a porta num repelão e correu para a escada. Ali, no momento em que ia precipitar-se, sentiu um arrepanhamento de medo e ficou largo tempo encostada ao corrimão, sem se atrever a subir.
Depois, numa decisão brusca, subiu a escada, à pressa, soerguendo as saias para não tropeçar. Ao chegar acima, endireitou logo ao corredor. Vendo fechada a porta do quarto da patroa, deitou as mãos ao puxador e, com um empurrão desesperado, fez saltar o trinco. A porta girou nos gonzos e foi embater na parede com um estrondo cavo que retumbou no quarto, que ecoou por toda a casa até se desfazer no silêncio morno e abafado da atmosfera.
Quando olhou para dentro, teve uma vertigem que a obrigou a apoiar as mãos trémulas, úmidas de suor, nas ombreiras da porta. Sobre a cama desfeita estava Maria Leonor, inerte, vermelha, descomposta. Os travesseiros caídos, a colcha arrastando no chão, um odor de sexo no ar...
Com um grito sufocado, Benedita recuou para a penumbra do corredor, com todo o sangue nas faces abrasadas, uma horrível náusea a subir-lhe do estômago até à garganta. Mas logo se atirou para dentro do quarto. Parou diante de Maria Leonor, a tremer, olhando-lhe as saias amarfanhadas, subidas quase até às coxas.
Estendeu a mão vacilante e cobriu-lhe as pernas. No mesmo instante, Maria Leonor moveu-se sobre os colchões com um gemido surdo e dorido. E logo, sem transição, abriu os olhos. Olhou para a criada, inexpressivamente, e soergueu-se, levando as mãos aos rins, com uma careta de dor. Sentada na cama, deitou um olhar à sua volta e começou a tremer. Levantou os olhos para Benedita, com uma expressão de medo inenarrável, absoluto.
A criada curvou-se para ela e deitou-lhe as mãos aos pulsos. Aproximou-a de si e, forçando a língua que se lhe entaramelava, só pôde perguntar:
- Que foi isto?

A sequencia de tudo isso parece ser o fim da própria Leonor, que tem sobre si multiplicado o fardo de culpa, porém, quem sucumbe à força da morte é o médico, num “auto-sacrifício”: “- Vínhamos informar a senhora de que o senhor doutor morreu. Encontraram-no no fundo do dique, com a charrette espatifada e o cavalo morto, também. Deve ter caído...

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É isso!

domingo, 6 de novembro de 2011

“As alegres senhoras de Windsor", de Shakespeare: brevíssimo comentário


Como toda comédia de Shakespeare, “As alegres senhoras de Windsor” é o enquadramento perfeito da máxima latina “Ridendo castigat mores”: instrui ao mesmo tempo em que diverte... A sagacidade das senhoras Ford e Page, aliada à fútil ostentação de Sir John Falstaff é de fazer “rir até cuspir o fígado”:

FALSTAFF
Deixa de trocadilhos, Pistola! É verdade que tenho uma cintura de duas jardas; mas neste momento não importa meu cinto, mas o que sinto. Em resumo, rapazes, tenho em mente fazer a corte à mulher do Ford. Estou certo de que hei de divertir-me bastante: conversa bem, é afável, sabe convidar a gente com o rabo do olho. Interpreto perfeitamente o seu estilo familiar. Mas o mais renitente trecho de sua conduta poderá ser traduzido da seguinte maneira: “Chamo-me sir John Falstaff! / FALSTAFFTenho aqui comigo uma carta escrevi para mandar-lhe, e uma outra para mulher de Page, que, faz pouco tempo, me lançou olhares animadores e examinou o meu físico com miradas judiciosas, ora dourando-me os pés com raios dos olhos, ora o ventre avantajado. / FALSTAFF — Percorreu minhas formas exteriores com tão ávida curiosidade, que o apetite de seus olhos parecia queimar-me como um espelho ustório. Esta carta aqui é para lhe ser entregue. É ela, também, quem dirige a bolsa do casal; é um trecho da Guiana, rica em ouro e liberalidades. Passarei a ser o coletor de ambas, e elas o meu tesouro, as minhas Índias orientais e ocidentais, comerciando eu pelos dois lados. Leva esta carta para a senhora Page, e tu, esta outra para a senhora Ford. Vamos ficar ricos, rapazes! Vamos ficar ricos! / SENHOPA FORDComo! Das cartas amorosas escapei no bom tempo de minha beleza, para tornar-me agora assunto delas? Vejamos: “Não me pergunteis o motivo de vos amar, porque embora o amor empregue a razão como seu médico, não a admite como conselheira. Já não sois jovem, como eu também não o sou; tendes gênio alegre, tal como eu, ah! ah! Para que maior simpatia? Gostais de xerez tanto quanto eu. Poderíeis desejar maior afinidade? Em resumo, senhora Page, basta saberes — se o amor de um soldado te for suficiente — que te amo. Não direi que te apiades de mim, por não ser soldadesca semelhante frase. Direi apenas: ama-me! Do teu cavaleiro que ao claro luzeiro do sol ou candeeiro por ti, prazenteiro, saudara o coveiro, lutando primeiro com o mundo inteiro. John Falstaff.” Que Herodes da Judéia será este? Oh mundo perverso! perverso! Um sujeito quase de todo roído pela idade, e que se comporta como um moço conquistador! em nome do diabo, que gesto refletido de minha parte poderá ter surpreendido esse bêbedo flamengo em minhas conversações, para ousar assaltar-me por esse modo? Como! Não chegou a conversar comigo nem três vezes! Que lhe poderia ter eu falado? De todas essas vezes fui muito frugal com relação à minha alegria — o céu que me perdoe! — Ora essa! Vou apresentar no parlamento uma lei para supressão de todos os homens. De que modo poderei vingada hei de ser, tão certo como serem feitas de pudim as minhas vísceras. / SENHORA PAGE Carta por carta, com a diferença de que onde uma traz o nome “Ford” a outra mostra o nome “Page”. Para tranqüilizar-te a respeito do mistério de tua má reputação, aqui tens a irmã gêmea de tua carta. Mas que fique a herança para a tua, porque posso assegurar-te que a minha jamais a reclamará. Aposto como ele tem um milheiro dessas cartas, com o lugar para o nome. E mais: que estas já estão em segunda edição. Sem dúvida alguma, vai publicá-las, porque para ele pouco importa o texto, contanto que o nosso nome esteja no meio. Eu preferia ver-me transformada em um dos gigantes e ficar debaixo do monte Pélion. Pelo que vejo, é mais fácil encontrar vinte rolinhas lascivas do que um homem casto.

Temas comuns em Shakespeare norteia toda à peça, como o ciúme, algo muito bem realçado em
Ford, o gentil-homem de Windsor, que chega a se disfarçar a fim de trazer á tona a suposta perfídia de sua esposa e a canalhice de Falstaff:

FORD
Muito embora Page seja um imbecil pachorrento e confie demais na fragilidade de sua mulher, não porei de lado minhas desconfianças assim com facilidade. Ela esteve com Falstaff em casa de Page, não sabendo eu o que fizeram por lá. Muito bem; vou estudar o caso mais de perto. Tenho um disfarce para sondá-lo. Se eu verificar que ela é honesta, não darei por perdido o trabalho. Caso contrário, foi muito bem empregado. / FORD — Que epicúrico amaldiçoado é este miserável! Sinto o coração partir-se-me de impaciência. E ainda haverá quem me venha dizer que o meu ciúme é intempestivo? Minha mulher lhe mandou recado; a hora está marcada; é negócio feito. Alguém poderia pensar em semelhante coisa? Vede que inferno é possuir uma mulher falsa. Vou ficar com o leito poluído, os cofres saqueados, a reputação estraçalhada. E não somente terei de suportar todos esses ultrajes, como ainda serei forçado a ouvir os mais abomináveis qualificativos, da boca, justamente, de quem me lança todo esse opróbrio. Que qualificativos? Que nomes? Arnaimom soa bem; Lúcifer, bem; Barbason, bem. No entanto são qualificativos do diabo, nomes do demônio. Mas cornudo, cabrão, chifrudo! Nem o próprio diabo tem esses nomes. Page é um asno, um asno sossegado; confia na mulher, não sente ciúmes. Eu preferira entregar toda minha manteiga a um holandês, meu queijo ao pastor Hugo, o galense, minha garrafa de aguardente a qualquer irlandês, ou o meu cavalo castrado a um ladrão, para dar um passeio nele, a deixar minha mulher com ela própria. Ela enreda, rumina e trama; o que as mulheres resolvem no coração tem de ser levado a cabo; ainda que se lhes parta o coração, têm de ir até ao fim. Louvado seja Deus por causa do meu ciúme. Onze horas é a hora combinada. Vou impedir isso, surpreender em flagrante minha mulher, vingar—me de Falstaff e zombar de Page. Não perderei tempo. melhor chegar três horas mais cedo do que atrasado de um minuto. Sim, senhor! Sim, senhor! Cabrão! Cabrão! Cabrão!

A senhora Quickly, que
diz detestar mexericos, é a típica expressão de uma astuta alcoviteira. Aliás, outro tema comum, não apenas em Shakespeare, como na dramaturgia universal ao longo dos tempos. Vemos isso de modo destacado em Gil Vicente, na pessoa de Brísida Vaz, na peça “Auto da Barca do Inferno”. Quickly, como uma boa agenciadora de casamentos, sempre sabe agradar seus “clientes”:

QUICKLY
Está bem. Mas ainda tenho outro recado para Vossa Senhoria: a senhora Page também se recomenda de coração a Vossa Senhoria. E permiti que vos diga ao ouvido: ela é fartuosa como o pode ser uma mulher civil e honesta, uma mulher, posso asseverar-vos, que nem de manhã nem de tarde deixa de dizer as suas orações, tão bem como qualquer mulher de Windsor, seja ela quem for. Pediu-me que dissesse a Vossa Senhoria que o marido dela raramente para fora de casa, mas que ela espera que não há de faltar ocasião. Nunca vi uma mulher tão obcecada por alguém. Só parece que tendes feitiço, não? É pura verdade. /QUICKLY — Oh, senhor! Ela lamenta o que aconteceu; se a vísseis, ficaríeis comovido. O marido dela vai caçar passarinhos esta manhã. Ela pede que a vades ver hoje, entre as oito e as nove. Terei de levar-lhe a resposta com a maior urgência possível. Ela vos apresentará desculpas, posso asseverar-vos.

Shakespeare não é apenas recomendado como leitura, mas
asseverado como obrigatório, pelo menos para quem deseja algo mais do que o simples entretenimento.

É isso!

sábado, 29 de outubro de 2011

"Jubiabá": a questão social em Jorge Amado

“Jubiabá”, da mesma maneira que em outros romances do escritor baiano Jorge Amado, apresenta inúmeros traços que apontam para o mesmo horizonte temático. Assim como em “Capitães da Areia”, por exemplo, encontramos em “Jubiabá” a questão racial, a superstição popular, a sexualidade, a injustiça social, entre muitos outros pontos, todos eles norteados pela visão socialista do autor, que sempre fora um defensor dos ideais comunistas. Tal fato fica bem evidenciado em ambos os romances na luta dos trabalhadores por melhorias de vida, que se dá pelo mecanismo da greve. Tanto Antônio Balduíno, em “Jubiabá”, quanto Pedro Bala, em “Capitães da Areia”, são contagiados pelo “clamor dos oprimidos”, tornando-se ambos atuantes grevistas: “- Meu povo, vocês não sabe nada... Eu tou pensando na minha cabeça que vocês não sabe nada... Vocês precisam ver a greve, ir a greve. Negro faz greve, não é mais escravo. Que adianta negro rezar, negro vir cantar para Oxossi? Os ricos manda fechar a festa de Oxossi. Uma vez os polícias fecharam a festa de Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia. Vocês se lembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada, nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, pára tudo, pára guindastes, pára bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes. Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é corno um colar. Tudo junto é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos pra lá” (“Jubiabá”). / “Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela policia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida” (“Capitães da Areia”).

A personagem Jubiabá, o respeitado pai-de-santo do Morro do Capa Negra, que dá nome ao romance, encarna a figura de um “pai bondoso”, para o qual recorrem os filhos quando necessitam de ajuda, quando estão doentes ou quando são desprezados pela sociedade. Embora muitas vezes perseguido por sua crença religiosa, o velho Jubiabá jamais deixou de defender os seus ideais de liberdade:

"Foi no dia do enterro da velha Luísa que Jubiabá para distraí-lo contou, na volta do cemitério, a história de Zumbi dos Palmares.
— O nome daquela rua é Zumbi dos Palmares, não é?
— É, sim senhor...
— Você não sabe quem foi Zumbi?
— Eu não. — Balduíno vinha triste, pensando mais uma vez em fugir e a princípio prestou pouca atenção à história, apesar de ser Jubiabá quem estava contando:
— Isso foi a um mundão de tempo... No tempo da escravidão do negro...
Zumbi dos Palmares era um negro escravo. Negro escravo apanhava muito... Zumbi também apanhava. Mas lá na terra que ele tinha nascido ele não apanhava. Porque lá negro não era escravo, negro era livre, negro vivia no mato trabalhando e dançando.
— E por que vinham pra cá? — Balduíno já estava interessado...
— Os brancos iam lá buscar negro. Enganavam negro que era tolo, que nunca tinha visto branco e não sabia da maldade dele. Branco não tinha mais olho da piedade. Branco só queria dinheiro e pegava negro pra ser escravo. Trazia negro e dava em negro com chicote. Foi assim com Zumbi dos Palmares. Mas ele era um negro valente e sabia mais que os outros. Um dia fugiu, juntou um bando de negro e ficou livre que nem na terra dele. Aí foi fugindo mais negro e indo pra junto de Zumbi. Foi ficando uma cidade grande de negros. E os negros começaram a se vingar dos brancos. Então os brancos mandaram soldados pra matar os negros fugidos. Mas soldado não se agüentava com os negros. Foi mais soldado. E os negros deram nos soldados.
Antonio Balduíno tinha os olhos abertos e tremia de entusiasmo.
— Aí foi um mundão de soldados mil vezes maior que o número de negros. Mas os negros não queriam mais ser escravos e quando viu que perdiam, Zumbi pra não apanhar mais de homem branco se jogou de uni morro abaixo. E os negros todos se jogaram também... Zumbi dos Palmares era um negro valente e bom. Se naquele tempo tivesse vinte igual a ele, negro não tinha sido escravo."

A lembrança do grande líder Zumbi dos Palmares, o negro valente que não se submeteu ao julgo do branco, sintetiza o sonho de liberdade de Antônio Balduíno, é o seu grande herói: “A estrela que é Zumbi dos Palmares brilha no céu claro. Um estudante certa vez se riu do negro Antonio Balduíno e disse que aquela estrela não era estrela, era o planeta Vênus. Mas ele ri do estudante porque sabe que aquela estrela é Zumbi dos Palmares, negro valente que morreu para não ser escravo, é Zumbi que brilha no céu e vê o negro Antonio Balduíno lutando para que Gustavinho não seja escravo.” Ele até fez um ABC para o grande vulto histórico dos Palmares:

Há muito tempo que ele não fazia um samba. Também, nas plantações de fumo, ele não tinha tempo para nada. Porém, agora, mal voltara para a Bahia, fizera dois sambas que até no rádio tinham sido cantados e, mais do que isso, fizera o ABC de Zumbi dos Palmares, onde cantava a vida que imaginava para o seu herói. Pelo seu ABC nascera na África, brigara com leões matara tigres e, um dia, enganado pelos brancos, entrou num navio que o trouxe escravo para as plantações de fumo. Mas ele não gostava de apanhar, fugiu, lutou junto com outros negros,matou muitos soldados e para não se deixar prender se jogou e uma montanha abaixo:
“África onde eu vi a luz
eu me alembro de ti
vivia solto, caçando
comendo fruta e cuscuz.
....................................
....................................
....................................
Palmares onde eu briguei
Lutei contra a escravidão
Mil polícias aqui veio
e nenhuma não voltou.
....................................
....................................
....................................
Zumbi dos Palmares então
do morro abaixo se jogou
dizendo: meu povo, adeus, vou morrer
porque escravo eu não sou”.

A pobreza, como conseqüência de uma política que segrega, que oprime e que só faz elevar a desigualdade social, está presente em todo a obra. O Morro do Capa Negra sintetiza um ambiente de segregação social, o “Alfavela” que contrasta com o “Alphaville”:

A vida do Morro do Capa Negro era difícil e dura. Aqueles homens todos trabalhavam muito, alguns no cais, carregando e descarregando navios, ou conduzindo malas de viajantes, outros em fábricas distantes e em ofícios pobres: sapateiro, alfaiate, barbeiro. Negras vendiam arroz-doce, munguzá, sarapatel, acarajé, nas ruas tortuosas da cidade, negras lavavam roupa, negras eram cozinheiras em casas ricas dos bairros chiques. Muitos dos garotos trabalhavam também. Eram engraxates, levavam recados, vendiam jornais. Alguns iam para casas bonitas e eram crias de famílias de dinheiro. Os mais se estendiam pelas ladeiras do morro em brigas, correrias, brincadeiras. Esses eram os mais novinhos. Já sabiam do seu destino desde cedo: cresceriam e iriam para o cais onde ficavam curvos sob o peso dos sacos cheios de cacau, ou ganhariam a vida nas fábricas enormes. E não se revoltavam porque desde há muitos anos vinha sendo assim: os meninos das ruas bonitas e arborizadas iam ser médicos, advogados, engenheiros, comerciantes, homens ricos. E eles iam ser criados destes homens. Para isto é que existia o morro e os moradores do morro. Coisa que o negrinho Antonio Balduíno aprendeu desde cedo no exemplo diário dos maiores. Como nas casas ricas tinha a tradição do tio, pai ou avô, engenheiro célebre, discursador de sucesso, político sagaz, no morro onde morava tanto negro, tanto mulato, havia a tradição da escravidão ao senhor branco e rico. E essa era a única tradição. Porque a da liberdade nas florestas da África já a haviam esquecido e raros a recordavam, e esses raros eram exterminados ou perseguidos. No morro só Jubiabá”.

O mundo divide-se entre os pobres e os ricos, os que sofrem e os que gozam. Sempre foi assim:

- Pobre tem que sofrer... Uns nasce para gozar: são os ricos. Outros para sofrer: são os pobres. Isso é assim desde o princípio do mundo.
- Pobre é tão infeliz que quando merda der dinheiro, cu de pobre aperta...”

É isso!