domingo, 12 de abril de 2020
quinta-feira, 5 de junho de 2014
Projeto Livro Livre
domingo, 5 de fevereiro de 2012
Caiu o Ministério!
Ainda não havia lido França Junior, e muito pouco sabia a seu respeito. Foi sua comédia “Caiu o Ministério!” que despertou em mim o interesse por seu legado literário. A peça é o reflexo irônico da política no Brasil durante a segunda metade do século XIX, sob o regime imperial de D. Pedro II, quando este já apresentava visível sinal de decadência. Mas a peça não trata exclusivamente de política. Também se observa nela, por exemplo, a banalidade dos costumes: DONA BÁRBARA — É moda cá da sua terra. Andam as velhas por aí todas pintadas, frisadas, esticadas e arrebicadas, à espera dos rapazes pelas portas dos armarinhos e das confeitarias. Cruz, credo, Santa Bárbara! Só se benzendo a gente com a mão canhota. Olhe, lá em Minas nunca vi disto e estou com cinqüenta anos! A influência da língua francesa no linguajar da burguesia tupiniquim, em detrimento da prevalência do inglês, é outro aspecto bem realçado na obra, algo que fica muito bem tipificado na personagem Beatriz: BEATRIZ — O corpinho estava come ci, come cá. A saia é que estava ravissant! Era toda bouilloné, com fitas veill’or e inteiramente curta. / O que aqui apreciam é muita fita, muitas cores espantadas... enfim, tout ce qu’il y a de camelote. / Muito bem, muito bem, lá para que digamos não senhor. Diz monsiù, negligè, bordó, e outras que tais. Outro traço destacado na comédia refere-se à influência da Europa, sobretudo da Inglaterra, em privilégios na execução de obras aqui no Brasil. É o caso do capitalista inglês Mr. James, que propõe uma “revolução” no transporte urbano da cidade do Rio de Janeiro, com a criação de um trem cinófero, ou seja, puxado por cachorros:MR. JAMES — Idéia estar aqui completamente nova. Mim quer adota sistema cinófero. Quer dizer que trem sobe puxada por cachorras. Cachorra propriamente no puxa. Roda é oca. Cachorra fica dentro de roda. Ora, cachorra dentro de roda, no pode estar parada. Roda ganha impulsa, quanto mais cachorra mexe, mais o roda caminha! Mim precisa de força de cinqüenta cachorras por trem; mas deve muda cachorra em todas as viagens. / Mas eu aproveita todas as cachorras daqui e faz vir ainda muitas cachorras de Inglaterra. / Oh! senhorr, não tem a menor periga. Se cachorra estar danada, estar ainda melhor, porque faz mais esforça e trem tem mais velocidade. França Junior foi um crítico contumaz da facilidade dos ingleses em obter regalias do governo brasileiro. Isso fica bem explicitado nesta fala de Mr. James: MR. JAMES — Mim quer privilégia para introduzir minha sistema em Brasil, e estabelecer primeira linha em Corcovada, com todas as favores de lei de Brasil para empresa de caminha de ferro.
O “audacioso” projeto de Mr. James, de carros saindo do Cosme Velho para o Corcovado, puxados por cães, transforma-se numa verdadeira batalha política. Havia os que estavam do “lado dos cachorros” e os que se opunham aos bichos. Da mesma forma como ocorre hoje com os nossos políticos, havia compras de votos e promessas de vantagens para quem ficasse ou saísse de ambas facções:
FILOMENA — E o que se lucrou em consultar a Câmara? Em assanhar a oposição, e formar no seio do parlamento dois partidos, o dos cachorros e o dos que se batem, como leões, contra os cachorros.
BRITO — E que partidos!
FILOMENA — E lá se vai o privilégio, falto à palavra que dei ao inglês, e o casamento da menina, víspora!
BRITO — Mas o que queres que faça?
FILOMENA — Que envides todos os esforços para que o projeto passe! Hoje é a última discussão.
BRITO — E o último dia talvez do ministério.
FILOMENA — Quais são os deputados que votam contra?
BRITO — Uma infinidade.
FILOMENA — O Elói é cachorro?
BRITO — Sim, senhora.
FILOMENA — O Azambuja?
BRITO — Cachorro.
FILOMENA — O Pereira da Rocha?
BRITO — Este é de fila.
FILOMENA — O Vicente Coelho?
BRITO — Era cachorro; mas passou anteontem para o outro lado.
FILOMENA — E o Barbosa?
BRITO — Está assim, assim. Talvez passe hoje para cachorro.
FILOMENA — Ah! Que se as mulheres tivessem direitos políticos e pudessem representar o país...
BRITO — O que fazias?
FILOMENA — O privilégio havia de passar, custasse o que custasse. Eu é que devia estar no teu lugar, e tu no meu. És um mingau, não nasceste para a luta.
BRITO — Mas com a breca! Queres que faça questão de gabinete?
FILOMENA — Quero que faças tudo, contanto que o privilégio seja concedido.
BRITO (Resoluto.) — Pois bem; farei questão de gabinete, e assim fico livre mais depressa desta maldita túnica de Nessus.
A “batalha dos cachorros” culmina, enfim, com mais uma queda de Ministério. Pronto! Estava aberto o caminho para os novos aspirantes a ministros e novos jogos de interesses na política tupiniquim.
Simplesmente genial esta comédia de França Junior!
É isso!
sábado, 4 de fevereiro de 2012
“María de Todos los Demonios”
A origem do livro, segundo o próprio Gabriel García Márquez, nasceu de uma reportagem que fizera em 1949, no antigo convento caribenho de Santa Clara, e tem como pano de fundo “a lenda de uma marquesinha de doze anos cuja cabeleira se arrastava como a cauda de um vestido de noiva, que morreu de raiva causada pela mordida de um cachorro, e que era venerada no Caribe por seus muitos milagres.” A marquesinha de que discorre o autor é Sierva María de Todos los Ángeles, personagem central do romance, filha do marquês de Casalduero.
Sierva Maria de Todos los Ángeles, que cresceu sob o convívio dos escravos e orixás, sucumbiu à desgraça após ter sido mordida por um cachorro cinzento com uma estrela na testa. Vítima da superstição popular e religiosa, a menina padeceu os piores tormentos, tornando-se prisioneira num Convento, onde experimentou a dor e o amor.
Entre muitos temas que podem ser extraídos da obra, a problemática da superstição e da crendice popular merece o devido destaque. O mundo de Sierva Maria de Todos los Ángeles, é o mundo dos demônios, dos anjos, das forças sobrenaturais, dos mistérios, dos complôs espirituais e das guerras entre as potestades do bem e do mal. Isso fica bem realçado, por exemplo, nesta passagem, quando o pai busca auxílio da crendice popular para curar sua filha:
“O marquês não se confiou a Deus, mas a tudo o que lhe desse alguma esperança. Na cidade havia outros três médicos formados, seis boticários, onze barbeiros sangradores e um sem-número de curandeiros e mestres em feitiçaria, embora nos últimos cinqüenta anos a Inquisição tivesse condenado mil e trezentos a diferentes penas e queimado sete na fogueira. Um jovem médico de Salamanca abriu a ferida fechada de Sierva María e pôs-lhe umas cataplasmas cáusticas para extrair os humores rançosos. Outro tentou a mesma coisa com sanguessugas nas costas. Um barbeiro sangrador lavou a ferida com a urina dela própria e outro a fez bebê-la. Ao fim de duas semanas ela havia suportado dois banhos de ervas e duas lavagens emolientes por dia, e levaramna à beira da agonia com cozimentos de antimônio natural e outros filtros mortais.A febre cedeu, mas ninguém ousou proclamar que a raiva estivesse conjurada. Sierva Maria sentia-se morrer. A princípio resistia com o orgulho intacto, mas após duas semanas sem nenhum resultado tinha uma úlcera de fogo no tornozelo, a pele escaldada por sinapismos e vesicatórios, e o estômago em carne viva. Passara por tudo: vertigens, convulsões, espasmos, delírios, solturas de ventre e de bexiga, e se retorcia no chão uivando de dor e de fúria. Até os curandeiros mais afoitos a abandonaram à própria sorte, convencidos de que estava louca ou possuída pelos demônios. O marquês já tinha perdido todas as esperanças, quando apareceu Sagunta com a receita de Santo Huberto.Foi o final. Sagunta se desfez de seus lençóis e se besuntou com ungüentos de índios para esfregar seu corpo no da menina nua. Esta resistiu de pés e mãos apesar de sua fraqueza extrema, e Sagunta a submeteu à força. Bernarda ouviu de seu quarto a gritaria demente. Correu para ver o que acontecia e encontrou Sierva María esperneando no chão, e Sagunta em cima dela, envolvida na maré de cobre da cabeleira e ululando a oração de Santo Huberto. Chicoteou ambas com as cordas da rede. Primeiro no chão, as duas encolhidas pela surpresa, e depois perseguindo-as pelos cantos até que lhe faltou fôlego”.
O imaginário religioso exerce força preponderante na vida das personagens, ainda mais por se estar no contexto histórico da Inquisição. A figura do demônio, como aquele que vive a atormentar as vidas dos homens que desobedecem a Deus, é essencial no enredo do romance. O comportamento “estranho” da garota não haveria de ser outra coisa senão a atuação do príncipe das trevas:
- Eu queria agüentar minha desgraça em silêncio - disse o marquês.- Pois muito mal o conseguiste - disse o bispo. - É um segredo público que tua pobre filha rola pelo chão, tomada de convulsões obscenas e ladrando em gíria de idólatras. Não são sintomas inequívocos de uma possessão demoníaca?O marquês estava espantado.- Que quer dizer?- Que entre as numerosas espertezas do demônio é muito freqüente a de assumir a aparência de uma doença imunda para se introduzir num corpo inocente - disse. - E uma vez dentro, não há força humana que o faça sair.
O comportamento de Sierva Maria de Todos los Ángeles, suas febres e delírios, não seria outra coisa senão a possessão maligna em seu corpo:
A abadessa brandiu o crucifixo como uma arma contra Sierva María.- Vade retro - gritou.Os criados recuaram, deixando a menina sozinha em seu espaço, com a vista fixa e em guarda.- Aborto de Satanás - gritou a abadessa. Ficaste invisível para nos confundir.Não conseguiram que dissesse uma palavra. Uma noviça quis levá-la pela mão, mas a abadessa a impediu, apavorada:- Não a toques - gritou. E a seguir, para todos: - Que ninguém a toque.Acabaram por levá-la à força, esperneando e distribuindo no ar dentadas de cachorro, até a última cela do Pavilhão da prisão. No caminho, perceberam que ela estava suja de seus próprios excrementos, e a lavaram a baldes de água no estábulo.
O imaginário religioso povoava as mentes que atribuíam à menina façanhas espetaculares e demoníacas, como voar com asas transparentes:
Daí por diante não aconteceu nada que não fosse atribuído ao malefício de Sierva María. Várias noviças declararam para as atas que ela voava com umas asas transparentes que emitiam um zumbido fantástico. Foram necessários dois dias e um piquete de escravos para encurralar o gado e pastorear as abelhas de volta às colméias, e pôr a casa
Fazia-se necessário exorcizar o demônio, demolir as potestades das trevas. Para isso, incumbiu-se o Padre Cayetano Delaura:
Cayetano Delaura foi no dia seguinte ao convento de Santa Clara. No hábito de lã crua que vestia apesar do calor, levava o acéter de água benta e um estojo com os óleos acramentais, primeiras armas na guerra contra o demônio.
Todavia, este mesmo padre, que já havia tido um amistoso diálogo com o descrente Abrenuncio, fica surpreendido quando contempla o semblante místico da Sierva Maria, num ambiente aterrorizante:
- Mesmo que não estivesse possuída por nenhum demônio - disse -,esta pobre criança tem aqui o ambiente mais propício para ficar possuída.
E o padre, enfim, apaixona-se por Sierva Maria, caindo, em conseqüência disso, no braço do Santo Ofício, porém, fora poupado da morte em praça pública, cumprindo sua pena num hospital “onde viveu muitos anos em promiscuidade com os doentes, comendo e dormindo com eles no chão e lavando-se em suas águas usadas, mas não conseguiu, como desejava, contrair lepra”.
Sierva Maria de Todos los Ángeles, por sua vez, desamparada por Deus, pelos homens e pelo homem de sua vida, morreu numa cama com os olhos fulgurantes e pele de recém-nascida: “Os fios de cabelo brotavam-lhe como borbulhas no crânio raspado, e era possível vê-los crescer”.
Outra figura que merece destaque no romance é o ateu Abrenuncio. Embora vivendo os tempos da Inquisição, mantinha uma postura crítica diante dos dogmas, colecionando seus “livros proibidos”:
- Não há muita diferença em relação - feitiçarias dos negros - disse. - É pior ainda, Porque os negros não vão além de sacrificar galos, ao passo que o Santo Ofício se compraz em esquartejar inocentes no potro ou assá-los vivos num espetáculo público.
É isso!
quarta-feira, 25 de janeiro de 2012
Kadish por um adulto traumatizado
Embora paradoxal, uma vez que o Kadish só pode ser recitado por adultos, o título “Kadish por uma criança não nascida”, simbolicamente, é deveras pertinente quanto ao conteúdo da obra. Como se sabe, além de ser uma oração feita pelos cultuantes, após a morte de um parente, o Kadish assinala ainda o fim de uma seção litúrgica recitada pelo Chazan. Em “Kadish por uma criança não nascida”, o autor representa, de certa forma, a figura do chazan, o qual “recita”, de maneira extremamente negativa, suas experiências de judeu no período do nazismo. O paradoxal é que sua “liturgia” não tem fim; e, seu “luto”, ao contrário do que ensina a tradição judaica, a qual não permite a recitação do Kadish durante os doze meses que procede a morte do cultuado, na obra, o “luto” do autor é constante e, diferentemente desta mesma tradição, o seu “Kadish” é “recitado” em vida: sua vida é sua morte.
O texto faz transparecer a idéia de uma verdadeira liturgia. Observa-se, tal qual nas rezas, a repetição constante das palavras. Dos poucos parágrafos existentes, a maior parte são marcados pela repetição do NÃO!, palavra esta que sintetiza o conteúdo da obra. Em todo o texto, percebe-se, nitidamente, a presença de palavras ou expressões de sentidos negativos e paradoxais. Por exemplo: doença insidiosa, paranóia moralizante, compulsão discursiva, esclerose dos sentimentos, regato fétido, céu de cores sujas, sonhos medonhos, sorriso cínico-feliz, infame existência, nostalgia, melancolia, sentimento de culpa, cadáver, espetáculo assombroso, atmosfera escura e densa de horror, perversidade repugnante, existência desagradável e outras inumeráveis citações de teor semelhante. E tudo isto torna a obra bastante verossímil, visto que é um reflexo da própria existência do autor: o ambiente em que foi criado, a educação que lhe foi dada, e mais acentuadamente, a experiência de ser judeu, portanto, um estranho na sua própria terra: “mais tarde, quando tornou-se cada vez mais importante o fato de eu ser também judeu, pois tornou-se lentamente evidente que, em geral, isso era punido com a morte, tive que provavelmente ver apenas esse fato estranho e incompreensível – isto é, que eu sou judeu – em sua necessária particularidade ou pelo menos sob outra visada, subitamente me flagrei por saber exatamente o que sou: uma mulher careca com robe vermelho em frente ao espelho” (p. 28).
Embora fosse um judeu totalmente assimilado, Kertész não foi poupado da perseguição voraz do nazismo. Este fato, aparentemente simples, isto é, o fato de ser um judeu, tornou-se a causa de todas as suas desgraças. Tudo nele foi marcado por esta traumática experiência: seu trabalho: “meu trabalho, que na verdade nada mais é que um cavar, o prosseguimento do cavar naquela cova que outros começaram a cavar no ar para mim” (p. 35) (...) “pois minha pá é a caneta esferográfica” (p. 37); seu fracasso matrimonial: “E aí ela ainda disse, rápida e sobriamente, como se se tratasse de uma notícia desagradável que, porém, perde seu gosto desagradável imediatamente após me ser comunicada, sim, não teria sentido esconder, ela ‘teria alguém’, alguém com quem ela acredita que se casará. E ele não seria, disse ela, judeu” (p. 127); sua vida, enfim.
A obra “Kadish por uma criança não nascida” foi, portanto, como o próprio autor afirma, o último grande esforço que ele teve em demonstrar sua vida amargurada e decrépita, vida esta que permaneceria guiada pela culpa e estranheza de ser apenas um judeu: “a demonstrei para então me colocar a caminho, com a trouxa dessa vida nas mãos elevadas, e afundar nas negras águas de um rio escuro, oh Deus! deixe-me afundar... Amém. Este amém encerra a melancólica “liturgia” que, embora “recitada” por só homem, reflete a angústia de toda uma geração.
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Fuga para a realidade
Bruno devia tornar-se um salmão por inteiro, para conhecer a vida” (pg. 141).
A idéia da metamorfose aparece, pois, como elemento imprescindível para se ultrapassar os limites da normalidade, do comum, do banal, do cotidiano marcado pelo caos e pela ausência de valores éticos: “E o pai de Bruno, sonhador com a cabeça de profeta, que se transformou num grande caranguejo de tantos sonhos para tatear os limites da existência humana... desviar-se para as regiões duvidosas e ambíguas, às quais Bruno denomina as regiões da grande heresia” (pg. 100).
Sim, fugir ou isolar-se do mundo real, para atingir um mundo, não propriamente irreal, mas um mundo sem os limites impostos pela áurea dominante; um mundo no qual a vida possa ser vivida e entendida de forma mais profunda. A transformação de Bruno em peixe representa, pois, uma espécie de contestação à cadeia de força imposta pela realidade caótica em que se encontra o mundo: “E veio a última guerra, e Bruno começou a pensar que havia errado: porque as pessoa começaram a substituir a sua iniquidade, e verificou-se que por trás das barracas dos negociantes astutos estendem-se mais mercados profundos e escuros, onde o homem jamais pôs os pés. Ruas corrompidas cujas ruínas e restos de paredes dos dois lados parecem fileiras de dentes de crocodilo... Por isso Bruno fugiu” (pg. 91). Tal qual Mirabeau ou Thotreau, foi preciso a Bruno que largasse o seu “lugar comum” para alcançar uma realidade em que o limite se restringisse apenas à cessação da imaginação: “Bruno pensa (talvez, no poeta Mirabeau que, em protesto contra o governo, tornou-se assaltante. Ou estaria, talvez, pensando no filósofo Thoreau, que abandonou sua cidade e seu trabalho e seu sistema de vida e as criaturas humanas e retirou-se para viver em solidão absoluta na floresta Walden?” (pg. 94). Para compreender o que está aquém do óbvio ou do palpável, fez-se mister que Bruno deixasse para trás aqueles que, tais quais salmões no mar, viviam a mercê dos grandes e prepotentes tubarões do mundo real: “Como é ignóbil o destino daqueles que Bruno abandonou na praia!” (pg. 96).
Metaforicamente Bruno não morreu. Ele apenas fugiu: “E certa noite, algumas semanas depois, despertei de repente e soube que Bruno não foi assassinado. Não foi morto no ano de 42 no gueto de Drohobitz, mas fugiu de lá. E digo ‘fugiu’ não no sentido comum, limitado da palavra, mas suponhamos, como Bruno diria ‘fugiu’. Como diria “aposentado”, e com isto referia-se ao fato de que já havia cruzado as fronteiras permitidas e conhecidas, ao fato que e levara ao âmbito magnético de uma outra dimensão de experiência... / Advinho muito bem esta angústia, este sufoco dele, de escritor exilado, ‘exilado’ num sentido muito específico, muito amplo...” (pg. 100). / “E diante das ondas, eu soube que tinha razão. Que Bruno não foi assassinado. Que tinha escapado. E digo ‘escapado’ não no sentido habitual da palavra, mas como Bruno e eu a dizíamos, e nos referíamos com isto a alguém que se conduziu por esforço e decisão ao campo magnético de uma dife...” (pg. 111). / “Ele é daqueles que chamam eles de judeus porcausaque falta pra ele um tiquinho no tubinho dele e como quedondequele nascdeu lá é Drohobitz e queeleé um serumano que escreve muito e ele agora foge de algo...” (pg. 122).
Contudo, não se trata da fuga no sentido romântico da palavra, em que para não encarar a realidade, o escritor parte para paradas amenas, para lugares nos quais a vida possa ser vivida numa dimensão maravilhosamente espetacular. Em Ver: Amor, a fuga é apenas um meio de se atingir o real que se esconde por trás de um cotidiano materialista em que somente o óbvio é realçado e valorizado. A vida vista do mar é bem mais azul.
---
Referência bibliografia:
“Ver: Amor”, de David Grossman. Tradução: Nancy Rosenchan. Editora Nova Fronteira. São Paulo, 1993.